sábado, 3 de setembro de 2011

O inimigo que não veio


Soldados da Brigada Militar entrincheirados na divisa
 do Rio Grande do Sul com Santa Catarina em 1961 
Crédito: ACERVO DO MUSEU DA BRIGADA MILITAR / DIVULGAÇÃO / CP
Parecia cena de filme. Um grupo de jovens soldados, na faixa dos 20 anos, parte de Porto Alegre em direção a Torres, no Litoral Norte, para proteger o Rio Grande do Sul de uma possível invasão da Marinha. No percurso, entoam "Canção do Expedicionário" e recebem o apoio da população. "Da avenida Assis Brasil até Gravataí havia muita gente na rua abanando e chorando, como se fosse um desfile militar", recorda o coronel reformado da Brigada Militar Jerônimo Santos Braga.

Foram duas semanas de tensão, em setembro de 1961, à espera de um inimigo que não veio. Dizia-se que a Marinha já estava preparada para promover um desembarque na costa gaúcha, a fim de combater a resistência comandada por Leonel Brizola em defesa da Legalidade. Por isso, era necessário proteger Torres, porta de entrada para o litoral do Estado. Para que o policiamento das cidades não fosse prejudicado, boa parte dos soldados enviados a Torres era formada por jovens alunos do terceiro ano do Centro de Instrução Militar - caso de Braga, que na época tinha 22 anos. Ele e os colegas não tinham a noção exata da gravidade da situação, mas prontamente responderam ao chamado. "O que mais nos movia era aquela coisa do espírito de tropa, de ser gaúcho e estar em um evento importante", explica Braga, hoje com 72 anos. Inspirado no avô Jerônimo Teixeira Braga, morto em combate como oficial comissionado, em 1932, o jovem havia ingressado na Brigada Militar aos 17 anos.

Mesmo que o combate tenha sido evitado, os dias em Torres foram marcados por contratempos. A começar pela viagem: o comboio com cerca de 80 veículos levou mais de 12 horas entre Porto Alegre e o destino final, percurso que em condições normais pode ser feito em três horas. Mas, em uma situação de guerra, todo cuidado é pouco. "Havia a observação da força aérea de que à noite os veículos tinham de trafegar a uma certa distância e sem luz", justifica o então aluno-soldado.

Ao chegar em Torres, por volta das 6h, a primeira surpresa: um avião sobrevoou o local onde as tropas estavam situadas. O comandante da companhia, capitão Odilon Chaves, tratou de conter os mais exaltados, pedindo que ninguém atirasse. Mais tarde, a frustração: o café da manhã não fora providenciado e os soldados ficaram sem comer. O mesmo ocorreu com o almoço e a janta. Para piorar ainda mais, chovia muito e, à noite, não foi possível terminar a montagem da posição. "Tivemos de dormir enrolados em lonas, fora dos abrigos, que estavam cheios d''água", conta Braga. A recompensa veio no dia seguinte, quando cada soldado recebeu café preto com graspa e duas bananas.

A linha de defesa foi montada em meio aos morros de Torres, próximo de onde hoje está localizada a Estrada do Mar. A rotina consistia, principalmente, em cavar buracos e preparar os abrigos antiaéreos para se proteger de uma invasão. "É uma movimentação estratégica para informar ao adversário que estamos preparados. Nos deslocamos para isso e para tentar dissuadi-los (a invadir o RS)", diz Braga. As unidades mais próximas ao mar ficavam atentas às luzes que pudessem surgir na água, sinal de que o inimigo se aproximava. Durante o dia, os soldados evitavam se deslocar para não serem percebidos pela observação aérea. O temido desembarque dos navios não ocorreu porque, segundo a imprensa da época, o "mar estava grosso". "Mar grosso é o mar muito picado, com muita onda, revolto e que impede a estabilidade das pequenas embarcações", explica o coronel reformado. No livro "Nós e a Legalidade", o capitão Odilon Chaves afirma não ter notado grandes alterações no mar. A tropa, então, passou a ser chamada de "mar grosso", pois acreditava-se que a presença da Brigada Militar, e não as águas revoltas, havia impedido a invasão.

Em um certo dia, Braga e um colega foram designados a instalarem-se em local longe do acampamento, onde acenderam uma fogueira para despistar o inimigo sobre a localização da tropa. Logo apareceram alguns agricultores, de quem os soldados compraram alimentos. Famílias e muitas crianças moravam nas redondezas. Foi então que o jovem soldado percebeu que o combate não ocorreria. "Certamente eles sabem que há civis e crianças aqui", disse Braga aos colegas na época. Três dias depois, a tropa recebeu ordem para voltar a Porto Alegre.

Com ou sem mar grosso, Braga considera positivo o desfecho daquele episódio - já que as consequências de um enfrentamento poderiam ser trágicas. "Haveria muitas mortes principalmente para a população civil. Imagine Torres sendo bombardeada", afirma. O coronel entrou para a reserva da BM em 1990, foi presidente da Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (Corag) e hoje dirige a editora da Pontifícia Universidade Católica do RS (Edipucrs). Apaixonado por comunicação, guarda em seu gabinete o rádio pelo qual a mãe ouvia, aflita, as notícias sobre o combate que não aconteceu. Ciente de que cumpriu o seu dever, hoje ele brinca ao contar a aventura para o neto. "A guerra não saiu de preguiça, mas que eu fui, eu fui."
ANO 116 Nº 335 - PORTO ALEGRE, QUARTA-FEIRA, 31 DE AGOSTO DE 2011   ESPECIAL > correio@correiodopovo.com.br


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